Lá
em casa, trabalhou uma senhora chamada Irene. Sabíamos que vinha algo bom toda
vez que Irene começava uma frase com “Tenho para mim...”. Duas das que me
lembro: “Tenho para mim que morcego é rato velho que cria asas”. Outra: “Tenho
para mim que nessa mata tem barulho de elefante” – aqui o ideal seria colar a
foto da pedreira que ocupa os fundos do nosso apartamento. Passei algum tempo
tentando imaginar um elefante, com dotes de uma cabra montês campeã olímpica,
escalando em rapel o paredão de pedra que, graças ao constante trabalho dos
passarinhos de reflorestamento, é pontuado por tufos de grama esparsos e que
Irene poeticamente chamava de mata.
O
primeiro parágrafo foi necessário para que não seja um plágio, e sim uma
homenagem à Irene, a expressão usada para abrir este relato. Tenho para mim que
os presentes surgiram logo após Deus arrancar uma costela de Adão e com esta
criar Eva. De cinco mil setecentos e setenta e cinco anos atrás, a inauguração
da primeira lojinha foi um salto na doutrina criacionista baseada no Gênesis
bíblico. E meu pai deve ser um personagem original nessa linha do tempo que
chega até as escadas rolantes dos shopping centers e o contemporâneo comércio
da internet. Ele simplesmente adora comprar presentes, mas não dá a mínima
para ter coisas e gosta menos ainda de recebê-las. Para que a ação lhe dê
prazer, ela precisa ser uma via de mão única. E tanto quanto ele ama comer
frituras – bife à milanesa, ovo frito, rolinhos primavera e Kentucky Fried
Chicken (que o paladar dele tem certeza de que, sem sombra de dúvida, é um
manjar dos deuses do Olimpo), Zequinha ama os vendedores, sem distinção de
credo ou geografia.
Avenida
Rio Branco, 109. De lá vinham, dentro de uma pasta de executivo modelo 007,
cigarrinhos de chocolate ao leite da marca Pan, quando fumar era fino, e minha
avó, com suas unhas impecáveis pintadas de esmalte vermelho escarlate, usava
piteiras. Minha mãe recebia charutos de massa marzipã (pasta de amêndoas,
açúcar e castanha de caju) cobertos com chocolate amargo da Kopenhagen. Também
recebíamos moedas de chocolate, talvez para estimular nossa educação
financeira.
Mas,
como já disse, Dr. José é magnânimo, não existe hierarquia no afeto que sente
pelos comerciantes, e os camelôs farejaram isso. Pulamos anos, agora os filhos
já têm filhas e, portanto, meu pai já é avô. Reparem que não uso o plural
masculino, porque a última geração é formada apenas por pererecas (mas esse é
um assunto para outro texto). Antes de a polícia cometer o perjúrio de isolar
os vendedores de rua no Camelódromo, um se instalou em frente à saída do prédio
de escritórios do número 109. Esse profissional do varejo, com muito tino
comercial, a cada semana ou quinzena trocava a mercadoria que vendia. Foi assim
que ganhamos os presentes mais úteis que jamais teríamos imaginado adquirir.
Por exemplo, uma noite papai chegou com umas cinco chaves de roda em cruz que servem
para desaparafusar pneus, embora eu nunca tenha sabido trocar um. As netas
ainda ganham agendas ilustradas com personagens de desenhos animados, embora
uma já esteja terminando a universidade. Não me lembro de ter recebido aquela
raquete elétrica de matar mosquito, que talvez tivesse sido de grande serventia
em tempos de Dengue, mas minha memória registrou as lanternas de diferentes
modelos e funções. Minha mãe também lembrou, num desses domingos, das cartelas
de pilhas.
Todo
mundo quer ver seu progenitor feliz, e eu estou longe de ser diferente, de modo
que só pude alegrar-me quando soube que os ambulantes foram pouco a pouco
escapando do confinamento do Mercado Popular da Uruguaiana. Meu português não
deu conta de compreender a definição que encontrei no próprio site do Mercado Popular da Uruguaiana se
autointitulando “o mais famoso centro comercial informal carioca”. Caro leitor,
defina o termo "informal" usando um sinônimo que seja ok para o
fisco. Valendo dez pontos! Bem, como papai não é advogado tributarista, tampouco
advogado da União, não cabe a ele intervir nessa seara.
E
foi assim que, num piscar de olhos, a viela que dá na entrada do metrô da
Uruguaiana estava tomada pelos mercadores apregoando suas bugigangas. Numa
dessas barraquinhas, um senhor distinto anunciava camas de cachorros, muito bem-acabadas
por sinal, a preços sedutores. Essa compra beneficiou minhas irmãs de quatro
patas, as duas cadelas labradoras, que hoje se refastelam em amplos colchões forrados
com ossinhos coloridos. E devo confessar que, tendo nas veias o sangue paterno,
não resisti e também virei freguesa. Meus dois filhos caninos tiram boas
sonecas em seus colchonetes.
Agora
chegamos à mais nova aquisição da série "camelôs do papai": de uma
caixa azul, onde (aposto!) se lê Made in China, saiu um pau de selfie.
Um dos cinco presentes que formaram o kit comemorativo, que
ele montou para minha mãe, das cinco décadas de casamento, das bodas de
ouro do casal. O regalo foi de cara enjeitado por D. Ana, mas papai, como
um bom advogado que é, tem sempre um argumento: "Vai ser igual ao ipad, Ana, que você falou que não
sabia por que precisava de um e...". Então, provavelmente, num futuro
próximo, teremos vários selfies familiares usando esse
utensílio que não é o último grito da moda, mas só recentemente chegou ao
comércio de rua das imediações do escritório da Avenida Rio Branco, segunda
casa do Dr. José.
Um brinde aos cigarrinhos de chocolates e ao nosso querido mercado "informal"
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